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Salada de Dados

Que loucura! Descobri que descendo de um rei a partir de um teste genético

Letícia A. Pozza

04/04/2019 04h00

Todo e qualquer dado gerado na sociedade informa sobre algum comportamento humano. Da mesma forma, todas as informações sobre quem somos estão impressas em nosso DNA. São mais de 3 trilhões de sequências genéticas contidas em cada pessoa, e isso se equivale a 80 gigabytes de informação gerados por DNA analisado, e os computadores para conseguir processar tudo isso ainda são caríssimos e ocupam uma sala inteira.

Mas, quanto mais analisamos do nosso DNA e mais temos informações sobre hábitos do dia a dia, mais a medicina poderá evoluir para quem sabe, um dia, termos remédios fabricados especificamente para cada um de nós e para as nossas necessidades.

A possibilidade de analisar nosso DNA, antes mesmo de nascermos, traz uma mudança de cenário incrível, pois ao invés de descobrirmos que temos alguma doença quando os sintomas aparecem, teremos a possibilidade de compreender, muito antes, quais as variantes (mutações que carregamos em nossos genes que tem a probabilidade de se desenvolver em alguma doença ao longo da vida) estão presentes em nosso DNA ou não.

Aqui, o importante, além de saber o que existe, é entender o que não existe.

Mas, são necessários muitos outros fatores para o aparecimento de uma doença, e possuir uma variante não significa que você irá desenvolvê-la, só significa que você tem mais chances de passar isso adiante para seus filhos ou, ao manter hábitos não saudáveis e que "despertem" ela, que você pode vir a tê-la.

Confuso e um pouco desesperador, mas um conceito importante!

Recentemente, Nina Garcia, editora-chefe da Elle, sabendo do seu histórico familiar com o câncer de mama, analisou seu DNA e encontrou mutações nos genes BRCA1 e BRCA2 que ao interagirem, aumentam as chances de câncer de mama e de ovário. Após vários outros testes, Garcia decidiu por uma dupla mastectomia preventiva (remoção e reposição das mamas), para buscar evitar passar por esta situação no futuro. Garcia, obviamente, é uma pessoa com privilégios e tem a possibilidade de intervenções como esta para prevenir que algo aconteça. Mas sabemos que essa não é a realidade de todos.

Além disso, existem algumas outras doenças, como a diabetes tipo II, que por mais que você saiba que você possui altas chances de ter, você não pode fazer muita coisa a não ser consumir pouco açúcar e manter hábitos mais saudáveis como um todo ao longo da vida. Ou seja, saber de antemão que você tem chances de algo, não lhe permitem, ainda, livrar-se delas.

Afinal de contas, edição de DNA em um corpo já existente ainda é coisa de filme.

Para entender um pouco mais sobre o tipo de resultado que se pode ter e quais informações são analisadas, eu realizei um desses testes (existem várias empresas no mercado que fazem isso!) e vou contar como foi essa experiência.

Como funciona a análise do seu DNA

O valor de um teste desses varia muito do local onde será feito e da complexidade da análise, podendo variar de US$ 100 a US$ 1.000. Fiz o teste nos Estados Unidos, com uma empresa chamada 23&me, e eles realizam um tipo de análise chamada genotyping, que é um pouco diferente do sequenciamento completo.

Isso significa que apenas 0,02% do meu DNA foi analisado, pois eles só sequenciam alguns pares de DNA, buscando elementos específicos e já comprovados importantes. É como se você tivesse milhares de dados na sua empresa, mas escolhesse olhar para o faturamento, por que sabe que aquilo é mais importante naquele momento.

Para realizar, você solicita pelo site e recebe uma caixinha pelo correio, em que você precisa cuspir (sim, salivar mesmo), em um potinho. Após cuspir no potinho, você envia ele de volta pelo correio e algumas semanas depois recebe a confirmação por email.

Sim, é simples assim. Você paga, cospe e tem seu DNA analisado.

Para eles, obviamente não é tão simples, todos nós temos uma divisão de 50% do DNA que recebemos da mãe e 50% que recebemos do pai. Existem 2 tipos de informações diferentes que são liberadas: dados sobre a sua ancestralidade (de onde veio o seu DNA) e dados sobre a sua saúde (quais as mutações e variantes que você possui ou não).

Através da separação desses haplogrupos, eles buscam o encaixe do seu DNA, compreendendo o que veio de cada lado e como ele é composto. Para dados de saúde, são utilizadas as perguntas que são respondidas pelos participantes e estudos que foram realizados com base na composição de DNA de outras pessoas. Ou seja, na medida em que eles vão gerando novas descobertas sobre novos genes e mutações, você vai sendo atualizado sobre o seu próprio DNA.

Abaixo, os meus resultados.

Minha árvore genealógica, de acordo com meu DNA

Lembrando que eu não informei nada além do meu email (não preciso dar nome, CPF, nada disso, somente email e cuspe!), e eu diria que tem várias questões que me surpreenderam na minha composição ancestral.

Sou de uma família de imigrantes italianos, que, como muitos outros, vieram para o Sul do Brasil fugindo da Segunda Guerra Mundial. Logo, não é de se suspeitar que o teste identificou que eu dividido 36,6% com meus ancestrais italianos. Mais especificamente, ele identificou que minha família é do sul da Europa.

Como estamos falando de um período em guerra, a mistura entre nacionalidades era grande naquela época, o que faz com que ele use o termo "broadly" para dizer que não é possível identificar exatamente de onde eles vieram, mas que é de uma região "ampla" da Europa.

Outra questão muito legal da análise é que ele consegue identificar o momento em que eu possuía alguém 100% nascido de uma única população. Ou seja, eu provavelmente tenho um tataravô 100% italiano e outro 100% francês e alemão que nasceram entre 1870 e 1930.

E antes disso, minha família vem de gregos, balkans, britânicos e irlandeses. O que 100% explica por que eu não bronzeio no sol! Brincadeiras a parte, é muito bacana poder entender o caminho percorrido pela nossa família, pois nada disso é simples de buscar, uma vez que são pessoas que tiveram que sair da sua terra por situações de guerra.

Além disso, se você deixar a informação liberada no sistema (aberta a outras pessoas que também realizaram o testes), ele lhe mostra outras pessoas que dividem DNA com você e possivelmente são seus parentes. Ninguém da minha família no Brasil fez o teste, mas ele identificou 114 pessoas que dividem de 1 a 2% do meu DNA (primos de terceiro e quarto graus), na Alemanha e na Itália.

E se eles possuam o DNA de alguma figura histórica famosa, ele traça a árvore até essa pessoa, como no meu caso, em que ele identifica que por parte de mãe eu tenho relação direta com o rei Richard III. Loucura né?

E é claro, todos nós viemos em algum momento da África, então ele identifica de qual ancestral humano você veio e de parte da África a sua família saiu (até 180 mil anos atrás!).

Minha saúde e meus gostos, de acordo com meu DNA

Sobre as descobertas de saúde, antes de você poder acessar a informação você deve passar por um pequeno vídeo que explica que por mais que você carregue determinadas variantes em seus genes, isso não significa que você irá ter essas doenças. Eu tenho 2 variantes, como são chamadas. Uma com baixo risco e outra com alto risco de desenvolver algo no futuro.

No gene HFE eu carrego a variante H63D, que está ligada com alta absorção de ferro no organismo. É uma condição genética, que no futuro pode resultar no desenvolvimento de hemocromatose e causar danos às juntas e alguns órgãos, como fígado, pele, coração e pâncreas. Motivo para desespero? Não, não tenho ninguém na minha família que tenha tido (que eu saiba) e eu sigo uma vida bastante saudável. Mas, devo sim, fazer exames para verificar o nível de ferro no sangue de tempos em tempos.

Além disso, ele classifica como "baixo risco", pois eu só possuo uma das duas variantes analisadas. Ou seja, precisamos evoluir neste ponto cientificamente para poder dizer se o risco é alto ou não.

Já nos genes F5 e F2, eu carrego o Fator V Leiden e Prothrombin G20210A, que são ligados à trombofilia hereditária, que é uma predisposição ao desenvolvimento de coágulos danosos, que se formam comumente nas pernas e podem ir ao pulmão. Estas são classificadas como "risco levemente alto". Junto a isso, o teste mostra que obesidade e muito tempo sem se movimentar podem aumentar as chances de desenvolvê-la.

São compiladas ainda diversas análises baseadas em combinação do seu DNA e perguntas que são realizadas aos participantes. Eu já respondi 270 perguntas realizadas e toda semana sai um questionário novo, com novas informações e dúvidas, que vão alimentando o banco de dados deles.

A partir disso, recebo informações que podem ser confirmadas ou não, como: minha composição muscular dificilmente faz parte de atletas de elite (bem possível), tenho baixas chances de ser viciada em café (médio, meu vício é chimarrão mesmo), possivelmente intolerante à lactose (pode me fazer mal quando estou mal do estômago), baixa propensão a ter espinhas (verdade), propensão à misophonia (100% odeio barulho de pessoas mastigando, 100% verdadeiro).

É uma forma interessante de conhecer um pouco mais sobre o grupo de pessoas que possui comportamento semelhante ao nosso e que fazemos parte.

Saber ou não saber, eis a questão

Com esses testes ficando cada vez mais baratos, resta saber se queremos saber de antemão os possíveis problemas aos quais seremos expostos ao longo da vida, ou iremos aderir ao ditado de que a "ignorância é uma benção". Talvez se soubermos lidar com essas questões desde cedo e se tivermos acesso e medicamentos projetados para nós será mais simples evitá-los, logo, será mais uma rotina, como olhar nosso celular quando acordamos.

E talvez hoje, essa relação nos assuste tanto pelo fato que ainda é muito difícil poder antecipar 100% daquilo que iremos enfrentar, pois não temos acesso a tratamentos personalizados e potencialmente curar uma doença como o câncer de mama signifique passar por procedimentos muito invasivos, como a remoção das mamas.

Agora imagine se algum dia essas informações forem pré-requisitos para realizar o nosso plano de saúde. Você faria o teste para poder pagar menos pois você quase não tem nenhuma pré-disposição genética? E seria justo cobrar mais de quem tem?

E imagine o potencial disso associado ao uso das informações que iremos coletar dos nossos corações e da quantidade de atividades que executamos todos os dias, uma vez conectados por smartwatches?

Por hora, fiquei bastante feliz com meu resultado e buscarei aderir a hábitos que não aumentem minhas chances de desenvolver as doenças. Eu escolho saber. Espero que a escolha seja sempre nossa.

Sobre a Autora

Letícia A. Pozza é cientista de dados criativa que atua como consultora em grandes organizações no Brasil e fora, auxiliando-as a se tornarem mais orientadas por dados.

Sobre o Blog

Assim como a salada, a probabilidade de você gostar do assunto dados é muito baixa. Mas não tem como fugir: a quantidade de dados disponíveis é cada vez maior e o universo dos dados logo será o seu. Melhor é a gente aprender a entender e gostar disso o quanto antes, certo? Aqui, vamos discutir uma miscelânea de assuntos conectando Big data, ciência de dados, cultura analítica e como isso impacta o seu dia a dia. Vem comigo! Quem sabe eu não te faço gostar de salada também?