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Num mundo construído sobre dados masculinos, ser mulher é um perigo

Letícia A. Pozza

06/03/2019 04h00

Que mulheres e homens são diferentes, todos sabemos: distribuição de massa, densidade óssea, hormônios, altura e peso… é tudo diferente. Mas será que a indústria e o design de produtos e de serviços leva esses elementos cruciais em consideração?

Mulheres consomem muito e estão cada vez mais independentes. No Brasil, elas representam mais de 40% da renda familiar e estima-se que em 25 anos essa relação seja de 50%-50%. Por isso, elas sempre foram consumidoras-alvo em diversos mercados, especialmente os de moda, casa e beleza.

Estudos mostram que, em muitos casos, elas inclusive acabam pagando mais: é a chamada "pink tax" (ou taxa rosa), que torna um produto 7% mais caro simplesmente por ser destinado a mulheres – geralmente, sendo exatamente igual aos outros produtos e com as mesmas funcionalidades, apenas mudando a cor (sim, costuma ser o rosa).

Isso foi exposto pela apresentadora norte-americana Ellen Degeneres, quando ela fez uma paródia da campanha da BIC, que oferecia "canetas feitas para mulheres" nas cores rosa e roxo. E que custavam o dobro das canetas tradicionais da marca. A partir daí, diversos estudos mostraram que as campanhas eram feitas para atrair o público feminino e não para, de fato, atender suas necessidades.

Quando estudamos para quem os produtos foram desenhados, vemos que a maioria deles descarta as especificidades femininas. Isso não só é inconveniente e discriminatório com mais de 50% da população mundial, como pode estar levando diversas mulheres à morte.

Uma das causas por trás dessas gafes é a menor representatividade das mulheres nessas indústrias e no desenvolvimento desses produtos (somos apenas cerca de 20% do mercado de tecnologia).

Por exemplo, quando o aplicativo de monitoramento de saúde da Apple foi lançado em 2014, os homens que o desenvolveram simplesmente esqueceram de colocar um monitoramento do ciclo menstrual – e só foram notar quando o produto foi duramente criticado por não ter sido pensado para as mulheres. Esse processo fez a Apple repensar sua equipe de desenvolvimento.

Homem branco é o padrão

Durante três anos, a pesquisadora americana Caroline Criado Perez estudou esse comportamento, que existe em todos os mercados ao redor do mundo: temos usado a regra de que a "média representa todos".

Ao investigar a média, ela descobriu que o padrão usado é o de um homem, caucasiano, de 25 a 30 anos, 1,70 de altura e 70 quilos.

Isso quer dizer que tudo que temos ao nosso redor foi pensado para e de uma perspectiva masculina. Carros, equipamentos de proteção individual, utensílios de construção, estudos de causas do câncer e metabólicos, identificação de tom de voz na tecnologia, tamanho de smartphones…

A lista de possíveis impactos no dia a dia da mulher é interminável e levanta questões relacionadas a inclusão, riscos e problemas de adaptação.

Carros para homens

Carros, por exemplo. Nos estudos da Perez, ela identificou que a forma como as mulheres sentam ao volante é diferente da do homem, principalmente pela altura e posição das pernas (no Brasil, a diferença média de altura entre homens e mulheres é de 13 centímetros). Nos testes de segurança, os bonecos utilizados são de homens de 76 kg e 1,77 m, não de mulheres.

A principal consequência é a não adequação da segurança do carro para mulheres, e estudos mais recentes mostram que essa não adequação faz com que sejamos 47% mais suscetíveis a nos machucarmos mais gravemente que homens em batidas de carros.

Quando tentam representar a mulher no teste, usam um manequim masculino menor, que geralmente está sentado atrás ou no banco do passageiro.

Além de representamos 35% da força motorizada do país, os músculos do nosso pescoço são diferentes. Portanto, batidas na parte traseira do carro fazem com que tenhamos três vezes mais ricochete do que os homens em situações de risco.

Expostas ao perigo

Durante um projeto para uma indústria brasileira, investigamos por que a força de trabalho era majoritariamente masculina. Ao entrevistar algumas mulheres da fábrica, descobrimos que elas não possuíam EPI's (equipamentos de proteção individual) do tamanho adequado, pois no intuito de "economizar" a empresa comprava um tamanho que servisse mais pessoas.

O que para os homens significava poucos centímetros de diferença, para as mulheres era um incômodo.

O mesmo exemplo foi estudado pela pesquisadora nas forças armadas americana e inglesa: os coletes à prova de balas são muito grandes e desconfortáveis (e várias mulheres deixavam de usar, expondo-as ao perigo) e desconsideram que as pessoas podem ter seios (e muitas realizaram redução de mama para poder seguir na carreira).

Conforto… para eles

Aliás, em termos de conforto no trabalho, temos inúmeros exemplos – desde a regulagem da temperatura da sala (baseada em dados do metabolismo masculino, sendo desconfortável e muito gelado para mulheres) até a disponibilidade de banheiros (mulheres levam mais tempo no banheiro do que homens por questões fisiológicas).

Na saúde do trabalho também: estudos sobre o impacto das adversidades do trabalho focam principalmente homens, mas sabemos que a mulher se expõe a diversas situações que sequer são exploradas. Já foi identificada inclusive uma relação entre químicos de beleza (unhas, cabelo, maquiagem) e de limpeza da casa e o desenvolvimento de câncer.

Isso é o que chamamos de "gender data gap" (ou falta de variabilidade nos dados).

O nosso ponto de referência por muitos anos tem sido o mundo masculino, com total descaso pelo universo e pelas necessidades femininas. E do ponto de vista econômico, desenvolver um produto que atenda a maioria faz total sentido, considerando a média para o público-alvo como foco inicial. Mas se a nossa referência de média é de uma base masculina e não considera a geração de dados feminina, ela não representa mais o todo e perde sua validação estatística generalizada.

Afinal de contas, 52% da população não é minoria. É, sim, menos representada.

As empresas começam a perceber isso. Dados do instituto Locomotiva mostram que 93% das mulheres não se sentem representadas pela publicidade brasileira, pois ela geralmente considera uma visão distorcida da realidade.

E para este cenário, a pergunta que permanece é: quando as empresas vão parar de achar que a simplicidade do rosa nos representa, e começar a entender que existe um sistema complexo de bases de dados que precisa ser repensado para que representem, atendam, assegurem e incluam o universo feminino?

Esta reportagem foi inspirada neste post do Guardian. Se você quiser saber sobre a Caroline, você pode encomendar o livro dela aqui.

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Sobre a Autora

Letícia A. Pozza é cientista de dados criativa que atua como consultora em grandes organizações no Brasil e fora, auxiliando-as a se tornarem mais orientadas por dados.

Sobre o Blog

Assim como a salada, a probabilidade de você gostar do assunto dados é muito baixa. Mas não tem como fugir: a quantidade de dados disponíveis é cada vez maior e o universo dos dados logo será o seu. Melhor é a gente aprender a entender e gostar disso o quanto antes, certo? Aqui, vamos discutir uma miscelânea de assuntos conectando Big data, ciência de dados, cultura analítica e como isso impacta o seu dia a dia. Vem comigo! Quem sabe eu não te faço gostar de salada também?


Salada de Dados